O pai já tinha voltado a ler o jornal. Já tinha cruzado as pernas como ele gostava de cruzar (de uma maneira que o joelho direito fica anatomicamente encaixado atrás do joelho esquerdo, a nádega esquerda da uma leve empinadinha, e o saco escrotal é deslocado para frente manualmente para não ser comprimido entre as coxas), já tinha preparado seu Gin tônica, que era para abrir o apetite para comer as postas de anchova que a empregada fatiou e temperou, de cara amarrada, no dia anterior.
Vem o Zé. O pai ouviu os passos do Zé chegando, mas fingiu que não ouviu. Também fingiu que não viu o seu filho sentar na poltrona ao lado e apoiar as mãos nos joelhos. O Zé suspirou. Isso é um mau sinal, significa que ele esta entediado, e possivelmente quer conversar. O Zé espirrou. O pai instantaneamente começou a pronunciar “saúde”, mas calou-se! O danado espirrou de propósito! Quando o pai dissesse “saúde” o silêncio estaria quebrado, e então pimba! o Zé ataca.
Não precisou de nada disso. Inquieto e excitado por descobrir ser da “esquerda”, ele quebrou o silêncio sem piedade. Mas falou olhando para os próprios pés.
- É bom saber que se é de esquerda.
O jornal tombou numa lentidão melancólica. O pai buscou ser sereno.
- E o que muda para você?
- Tudo!
- Tudo? Você tem dez anos!
- Pois é. Mas já estava na hora de eu ter certeza!
- Certeza de que?
- De que somos da esquerda!
- Isso é ótimo, filho – desde que não interferisse no sossego dele – Mas porque agora? Porque toda essa determinação agora?
O menino ensaiou relutar, voltou bruscamente a olhar seus próprios pés, assumiu com firmeza.
- É que eu vou furar a orelha escondido.
Nem tão escondido, agora. O pai quase ficou zangado, quase. Mas mediu bem a situação.
- Escondido de quem, Zé?
- De você e da mamãe.
Que curioso, o menino contar dessa maneira, antes mesmo de cometer o crime! O pai não conseguiu se irritar. Deu um sorriso meio disfarçado.
- É melhor furar a esquerda. – E nesse instante o menino levou o olhar aos olhos do pai, e já sorrindo:
- Porque somos de esquerda?!
- Não meu filho, é que furar a orelha direita – e se aproximou do ouvido do filho, como quem conta um segredo – é coisa de veado.
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